O Conselho Nacional de Saúde recomenda a exclusão de qualquer proposta legislativa que disponha sobre a venda de medicamentos em supermercados. A Recomendação nº 043 de 19 de dezembro de 2024, aprovada pelo pleno do CNS durante a 361ª Reunião Ordinária do colegiado e direcionada ao Congresso Nacional, surge no contexto da discussão sobre o Projeto de Lei 1774/2019 na Câmara dos Deputados.
O projeto autoriza supermercados e disposições semelhantes a dispensarem medicamentos isentos de prescrição, o que, pela avaliação do plenário do CNS, pode desencadear interesses comerciais acima do cuidado à saúde das pessoas, do acesso racional e seguro dos medicamentos e à segurança e ao bem-estar da população. Débora Melecchi, coordenadora da Comissão Intersetorial de Ciência, Tecnologia e Assistência Farmacêutica (CICTAF/CNS) afirma que o PL 1774/2019 representa um grave risco para a saúde pública, já que caminha em direção voltada ao uso racional de medicamentos.
“O PL representa um grave risco para a saúde pública ao banalizar o uso de medicamentos sem a orientação necessária, colocando as vidas humanas em perigo. Além disso, desconsidera a importância do trabalho farmacêutico, essencial para atender às necessidades da população com responsabilidade e respeito à vida”, declara.
A recomendação do CNS reitera que a Política Nacional de Medicamentos , aprovada em 1998, tem como objetivo a garantia da necessidade de segurança, eficácia e qualidade destes produtos, a promoção do uso racional e o acesso da população considerados essenciais, bem como a reorientação da Assistência Farmacêutica (AF).
Outro aspecto importante apresentado no documento é relacionado à 1ª Conferência Nacional de Medicamentos e Assistência Farmacêutica e à criação do Programa Farmácia Popular do Brasil, que reconfiguraram o lugar do medicamento, da farmácia e do trabalho farmacêutico na compreensão de que o acesso aos medicamentos passa ao patamar concreto do direito à Assistência Farmacêutica.
Cláudio Maierovich, ex-presidente da Anvisa e integrante da Comissão Intersetorial de Vigilância em Saúde (CIVS/CNS), explica que os medicamentos isentos de prescrição podem ser vendidos e propagandeados, e que ao disponibilizar esses medicamentos em pontos de venda que não são farmácias e drogarias, um novo e indevido hábito de consumo pode ser oferecido às pessoas. “Isso significa dizer que faz parte do hábito de compras das pessoas levar medicamentos para casa, então elas passam a estocar remédios assim como estocam arroz, farinha e outros alimentos”, pondera.
Dessa forma, o uso de medicamentos é banalizado e essa disponibilidade em supermercados e lojas de conveniência podem estabelecer um novo padrão, ou de que eles façam parte das compras de casa, descolando o uso de remédios com o objetivo de ter mais saúde.
Histórico de comercialização de medicamentos no Brasil
A discussão sobre venda de medicamentos fora de farmácias é antiga no Brasil. A Medida Provisória (MP) 592/94, que implantou o Plano Real, por exemplo, liberou por um ano a venda de medicamentos analgésicos em supermercados e armazéns. Porém, a ação foi suprimida quando a MP foi convertida na Lei 9.069/95. A partir daí iniciou-se uma série de tentativas de legalização deste comércio, que só foram encerradas em 2004, com a concessão pelo STJ de tal negociação.
Neste contexto, vale fortalecer também o longo escopo legal que farmácias e drogarias precisam atender para funcionar, como autorização de Funcionamento de Empresa (AFE) da Anvisa, alvará de funcionamento, alvará sanitário, registro no Conselho Regional de Farmácia (CRF), além de contar com um profissional farmacêutico devidamente habilitado e registrado. Supermercados e outros estabelecimentos comerciais que queiram dispensar medicamentos deveriam, portanto, seguir as mesmas regras jurídicas, o que não está previsto no PL 1774/1990.
É o que defende Nelson Mussolini, representante da Confederação Nacional das Indústrias no CNS. “Seria preciso que o supermercado e demais estabelecimentos seguissem, portanto, as mesmas regras sanitárias que uma farmácia deve respeitar, como ter um farmacêutico à disposição para quem tem dúvidas sobre o uso”, defende. Nelson também observa que da forma como está proposto o PL, um medicamento para enxaqueca poderia estar à venda próximo ao setor de bebidas alcoólicas. “Não é interessante que haja este espaço para uma venda casada”, pondera o conselheiro.
Insegurança
“A gente observa que é um movimento que pode trazer insegurança ao uso de medicamentos, ou seja, é você deixar de olhar a saúde com responsabilidade”, defende Maurício Cavalcanti, da Confederação Nacional do Comércio de Bens, Serviços e Turismo. Também conselheiro nacional de saúde, Maurício destaca que a segurança do uso de medicamentos é o principal ponto a ser apresentado, já que são produtos químicos, em medicamentos sua grande parte, e que podem causar reações adversas, intoxicações, interações medicamentosas, interações alimentares, mascarando inclusive outras doenças, mesmo no caso dos medicamentos isentos de prescrição, que também possuem substâncias que, se tomadas em excesso, podem oferecer risco à vida.
Ele destaca ainda que não é propositivo comparar o mercado brasileiro com outros mercados internacionais, como é o caso dos Estados Unidos, que possui um sistema de saúde diferente do Brasil. “Temos casos de países que voltaram atrás nessa regulamentação, como França e Austrália, ao verificarem que a medida traria prejuízos à saúde pública. Querem aqui criar um novo modelo, que possa trazer muito mais malefícios à saúde da população. Se querem colaborar com a saúde pública, é preciso então respeitar a legislação”, finalizou.
O Ministério da Saúde se posicionou contrário ao PL, reforçando que a medida compromete o alcance do eixo estratégico XIII da Política Nacional de Assistência Farmacêutica, que prevê a promoção do uso racional de medicamentos, por meio de ações que orientam a prescrição, a dispensação e o consumo.